top of page

DEFINIÇÕES

Muito ligada ao conceito de arquitetura vernacular e comumente reproduzindo saberes construtivos populares, a bioconstrução pode ser definida como a utilização de técnicas de arquitetura vernacular que utilizam materiais locais naturais e soluções bioclimáticas mais simples e intuitivas com a natureza do espaço, traduzindo a sabedoria e a criatividade de um povo que perpetua esses conhecimentos entre as gerações através da autoconstrução.

Buscando priorizar mais as relações humanas e o patrimônio arquitetônico/cultural do que as relações meramente econômicas que se dão no mercado da construção civil, fica evidente o lado social de sua filosofia, onde o conhecimento das técnicas repassado entre as gerações e a valorização dos mestres e mestras construtores nos ensinam a observar a natureza ao nosso redor e recriar soluções criativas com os recursos que temos.

Além das técnicas construtivas e emprego de materiais ecológicos, renováveis e presentes no entorno, todo o ciclo de vida da construção, desde a extração dos materiais, seu uso e manutenção e até mesmo sua demolição são considerados: como essa construção irá tratar seu lixo e esgoto? como a água e a energia serão capturadas de forma eficiente, diminuindo a dependência dos sistemas de abastecimento municipais? como ela irá retornar para a natureza? 

Dentre o uso de diversas técnicas e materiais naturais utilizados, a construção com terra ganha destaque por sua adaptabilidade e abrangência em diversas partes do mundo. O conforto térmico que ela oferece, deixando fresquinho o ambiente interno da construção, faz dela uma solução ecológica e de fácil acesso a ser considerada no processo de construção. Contudo, um dos maiores preconceitos contra a bioconstrução se relaciona com a presença do mosquito barbeiro, que transmite a doença de Chagas. Importante ressaltar que o barbeiro pode se alojar em frestas de qualquer tipo de construção independente do ma

Na região da Chapada dos Veadeiros, o povo Kalunga é representante de um patrimônio material e imaterial, com sua arquitetura vernacular que faz deles bioconstrutores natos com uma herança de saberes construtivos que não pode ser apagada ou substituída. 

Já que o movimento turístico é intenso na região, se por um lado o ecoturismo está promovendo o crescimento econômico para os municípios e motivando proteções ambientais, por outro observa-se uma lacuna com a falta de proteção do patrimônio cultural local. Paralelamente, a arquitetura vernacular pode trazer um movimento turístico também, dando origem a novos circuitos e difusão de saberes construtivos dentro da bioconstrução com eficiência energética estimulando um processo de recuperação e valorização desse patrimônio. 

Outro ponto que se observa está na pouca disponibilidade de mão de obra disponível, evidenciando a necessidade de incentivar a conscientização e sensibilização das comunidades locais, dos turistas e dos arquitetos, engenheiros e construtores que estão atuando na região sobre a importância da preservação desse patrimônio, difusão e utilização nas obras. 

O projeto Ciranda Viva Bioconstrução, conduzido pelo bioconstrutor kalunga Carlos Pereira, em Cavalcante, busca difundir os saberes construtivos kalunga entre os jovens da comunidade que querem se especializar nas técnicas e atuar no mercado de trabalho da construção civil, em alta na região. Projetos como esse reforçam a importância de valorizar e difundir o patrimônio arquitetônico local, e como essa preservação pode impactar positivamente as comunidades locais e o próprio mercado imobiliário, contribuindo com esse processo e aproveitando a alta demanda em curso por projetos de bioconstrução na Chapada e, ao mesmo tempo, difundindo o saber construtivo Kalunga

CONSTRUÇÕES KALUNGA

Os primeiros quilombolas que começaram a habitar a região, no século XVII, precisaram aprender a sobreviver nesse espaço conhecendo a natureza ao seu redor e os recursos por ela oferecidos. Como bioconstrutores natos, aprenderam a distinguir nas árvores as madeiras úteis para construção de ferramentas, mobiliário e casas, como o jatobá, ipê, aroeira e sucupira branca, das quais podiam extrair os esteios para a casa de pau-a-pique, os barrotes e as vigas. As tabocas rachadas e os galhos finos de árvores do cerrado serviam de varas que, quando trançadas e amarradas com cipó, eram recobertas com terra amassada com água, formando as paredes de taipa de mão. Palmeiras como o buriti e indaiá forneciam palha para cobrir os telhados das casas e algumas paredes também. Dos barrancos dos rios aprenderam a coletar o barro ideal para fazer adobe, entendendo que a resistência dessa terra era maior que a da terra crua. 

A casa Kalunga segue uma racionalidade construtiva em sua arquitetura, com forma ortogonal e espaço interior bloqueado ao mundo externo, voltando os olhares para o interior da casa. As janelas, quando existentes, eram pequenas e muitas vezes se utilizavam seteiras, aberturas triangulares na parede comuns em fortificações militares. 

O emprego da palha nas coberturas das casas possivelmente veio como herança africana, colonial portuguesa e indígena. As mais utilizadas são as palhas do indaiá e do buriti, mas atualmente a utilização da palha como cobertura vem diminuindo devido à rápida propagação do fogo e a baixa durabilidade que a fibra possui. 

Os lugares sagrados destinam-se aos rituais coletivos que acontecem ao longo do ano, vinculados ao calendário religioso e agrícola, onde se vê o sincretismo religioso com o festejo dos santos católicos e de crenças africanas.  

Mesmo que a região habitada pelos Kalunga seja rica em pedras, a construção com terra foi priorizada em suas moradias devido às suas vantagens em relação à extração, ao manejo, ao tempo de execução e à facilidade de expansão territorial, por ela ser mais simples e acessível em relação à construção com pedras, contribuindo para a autonomia do povo Kalunga. 

O tijolo de adobe veio das cidades vizinhas para as comunidades Kalunga substituindo o emprego de fibras naturais como a palha em suas construções, que rapidamente propagam o fogo e tinham uma durabilidade menor, além da taipa de mão, ou pau-a-pique, que frequentemente atraía o mosquito barbeiro em suas frestas. 

Apesar de a terra, a palha e a pedra apresentarem prós e contras no emprego em construções, esses três materiais abundantes no território Kalunga permitiram a autoconstrução de base familiar, contribuindo para a fixação deste povo naquelas terras e deixando clara a relação entre a ocupação territorial e a moradia kalunga no sentido de que a construção com terra é forte, resistente e reforça o sentido de posse do lugar. 

Mesmo sendo técnicas adaptadas ao local e acessíveis, a urbanização acelerada e a perda dos saberes populares pela introdução e incentivo ao uso de materiais industrializados e tecnologias importadas de outras regiões com a premissa do “desenvolvimento” estão afetando a arquitetura tradicional do lugar, trazendo construções descaracterizadas e perceptivelmente não adaptadas ao contexto e que ignoram os saberes da população local que possui entendimento completo do território e de técnicas vernáculas que garantem o verdadeiro valor arquitetônico das habitações no contexto em que se inserem. Outro fator que contribui para a perda desse patrimônio é a associação à pobreza comumente propagada sobre as construções com terra, afastando o interesse dos jovens em aprender com os mais velhos sobre essas técnicas e repassá-las às futuras gerações. 

bottom of page