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HISTÓRIA E RECONHECIMENTO DO QUILOMBO KALUNGA

No período colonial do século XVII até o século XIX o Brasil recebeu aproximadamente 4 milhões de africanos, sequestrados de partes diferentes da África e forçados ao trabalho escravo nos diversos ciclos econômicos, da cana-de-açúcar, mineração, algodão, entre outros, na consolidação da colônia portuguesa. A escravidão foi abolida apenas em 1888, sendo o país não apenas o que recebeu o maior número de africanos escravizados no Novo Mundo, mas o último a abolir esse sistema.  

Onde houve escravidão houve resistência, e muitas pessoas escravizadas que conseguiram fugir abrigaram-se nas matas, nos morros e em locais de difícil acesso, se organizando em comunidades quilombolas, onde guardavam suas histórias e culturas de origem africana.  

No Goiás, essa história começou com a chegada dos bandeirantes Bartolomeu Bueno da Silva e João Leite da Silva Ortiz, vindos de São Paulo em 1722. Ao longo da expedição, os bandeirantes encontraram minas de ouro e implementaram o ciclo minerador onde já viviam os povos indígenas “goyazes”, trazendo africanos escravizados para exploração.  

A relação com povos indígenas como os Xavantes e Kaiapós se dava de forma ambígua, podendo ser de conflito ou harmônicas. O povo do quilombo Kalunga guarda tradições das duas etnias, como relata Dona Lereci: “Sabemos que por ter tido muitas ligação e entrosamentos com os índios nós herdamos muitas coisas deles, como por exemplo: o modo de nos fazer as nossas roças, as moradias, a caça e pesca”. (relatório 2015, p.8). 

A história do Quilombo Kalunga começou a ser disseminada na década de 80 pela antropóloga Mari Baiocchi, ao identificar a preservação de modos de vida e elementos tradicionais da cultura africana e indígena, devido ao afastamento geográfico e a ausência de contato com elementos da modernidade que preservaram a cultura tradicional dessa comunidade. 

Em 1991 o Território Kalunga é reconhecido e tombado como patrimônio histórico e cultural pelo Governo do Estado de Goiás, ocupando essa área há mais de 200 anos, reconhecido pela Fundação Cultural Palmares como Comunidade Remanescente de Quilombo no ano 2000. Apesar da delimitação do Território Kalunga, na verdade esse povo não possui fronteiras delimitadas internamente, seus descendentes ultrapassam as linhas imaginárias estabelecidas e se espalham por toda a Chapada dos Veadeiros e por outros lugares no entorno. 

APRESENTAÇÃO GEOGRÁFICA DO TERRITÓRIO

O território da comunidade quilombola Kalunga está localizado na região nordeste do estado de Goiás e integra a região da Chapada dos Veadeiros, com a qual se limita o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, na parte sul. Perpassa os municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, com uma área delimitada de 237.000 hectares, com aproximadamente 60 comunidades.  

Considerado um espaço geográfico singular (ALMEIDA, 2010) distinguindo-se dos chapadões, apresenta vãos, serras e morros com depressões e vales estreitos e rios encaixados. Altitude média entre 800 metros do nível do mar, ultrapassando 1600 metros em alguns pontos de suas montanhas. 

O clima da região é tropical sazonal com invernos secos, e verões chuvosos entre outubro e abril, tendo janeiro e fevereiro os meses mais chuvosos. O território é cortado pelos rios Paranã, da Prata, Corrente, das Almas e Córrego dos Bois, e integra o Bioma do Cerrado, com vegetação predominante de Campo Cerrado. 

O Sítio Histórico do Território Kalunga ocupa a maior área de cerrado preservado do Brasil e apresenta um dos mais altos índices de biodiversidade do planeta sendo o primeiro território do brasil reconhecido com TICCA Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais, pela ONU, no ano de 2021. 

A Comunidade se organiza principalmente em quatro núcleos: O Engenho II, mais próximo dos núcleos urbanos de Cavalcante e Alto Paraíso, o Vão do Moleque, o Vão de Almas e o antigo Ribeirão dos Negros rebatizado como Ribeirão dos Bois.  

TERRITORIALIDADE KALUNGA

Os territórios quilombolas são conhecidos pelo uso comum e compartilhado da terra. Durante muito tempo não havia registros de conflitos, onde as terras ocupadas eram de uso e subsistência em equilíbrio com os recursos da natureza, partilhadas pelas comunidades.  

Tradicionalmente a comunidade Kalunga desenvolve uma relação singular com a terra e os elementos naturais do local, as serras, os rios, as áreas de cultivo, as casas e espaços coletivos, apresentando uma forma de viver integrada aos elementos disponíveis. Dessa forma o território é constituído não apenas apenas pela terra e pelos elementos materiais, mas também pelo que é imaterial no desenvolvimento da cultura ancestral daquele povo, a partir das relações sociais e das vivências realizadas naquele local, a história vivenciada. 

A territorialidade é uma identidade vinculada à terra, onde os modos de fazer e viver se relacionam diretamente com os elementos presentes no território. A cultura ancestral trazida pela ascendência africana e indígena imprime nas construções e no solo do território as técnicas construtivas e de cultivos aprendidas de geração em geração. A comunidade Kalunga também é conhecida pelos seus festejos e pela religiosidade, festas anuais que juntam a comunidade.

É muito comum no território o uso de uma técnica de cultivo chamada de ”roça de toco”, de origem indígena. São produzidos arroz, feijão, mandioca, milho, abóbora, batata doce, banana, cana, taioba, algodão, gergelim, amendoim, feijão andu, feijão de corda, quiabo, maxixe, melancia, jiló, com sementes passadas de geração em geração.  

A caça e a pesca também fazem parte da economia da comunidade, que em geral não produzia para excedente por falta de estradas e acesso a outros locais para venda, sendo comum a troca entre as comunidades dentro do território. 

Recentemente o turismo tem se tornado uma fonte de retorno econômico e meio de organização comunitária, através da criação de associações para proteção de seu território, assim como limites e controle para visitação sob gestão dos Kalungas. 

Ao mesmo tempo em que a chegada da infraestrutura urbana, como as estradas, luz, água, escolas e saúde ainda é precária, os costumes e tradições da comunidade se misturam com as novas atividades, resultando em um desafio para a comunidade em manter a tradição e renovar a cultura com as novas dinâmicas territoriais.

Por se tratar não apenas de uma comunidade quilombola, mas também de um sítio histórico, a relação entre Patrimônio e Território é muito estreita, tendo em vista que a manutenção da cultura está vinculada diretamente aos usos e relações espaciais que se desenvolvem naquela terra, constituindo o próprio território kalunga um sítio de valor a ser preservado pela nação. Dessa forma os modos de fazer e viver, assim como as técnicas de arquitetura vernacular, são aqui destacadas por compreender que a arquitetura é a síntese da relação do homem com o seu território, e os elementos materiais são representantes dos elementos simbólicos a serem preservados. 

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